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CARTOGRAFIA URBANA: INFORMAÇÃO CONDENSADA SOBRE O TERRITÓRIO

novembro 5, 2019
Paul Klee

Para o estudo da história da forma urbana, a análise cartográfica constitui um recurso metodológico imprescindível. Como documentos de época (fontes primárias de pesquisa) que são, os mapas urbanos registram a configuração assumida pelas ruas, quadras e edificações de uma mesma cidade em determinados momentos de sua história. Permitem, portanto, procedimentos analíticos de grande valia e de caráter exclusivo, já que não seria possível empreendê-los a partir da pesquisa historiográfica tradicional baseada em documentos escritos. Entre esses procedimentos destacam-se, principalmente: análises comparativas entre diferentes períodos históricos, superposição de traçados, estudos da toponímia dos logradouros ao longo da história, recuperação de informações sobre elementos urbanos já desaparecidos, reconstituição dos processos de transformação urbanística, permitindo, em muitos casos, acrescentar informações inéditas à historiografia. Não obstante a validade dos procedimentos analíticos anteriormente mencionados, vale lembrar que a análise cartográfica não pode prescindir dos aportes fornecidos pela pesquisa histórica tradicional.

Para a pesquisa cartográfica é de fundamental importância o fenômeno da permanência histórica apresentado pelas vias e pelo plano de uma cidade. A velocidade e a intensidade das transformações verificadas nas formas arquitetônicas é, em muito, superior àquelas verificadas no desenho das vias e da inscrição bidimensional da forma dos prédios contidos no plano cadastral urbano. Os tempos longos de maturação do desenho das vias de uma cidade não são reportáveis às transformações volumétricas da massa edificada. Tratam-se de escalas temporais distintas. Ressalvadas as exceções representadas por intervenções de grande magnitude, patrocinadas por um poder fortemente centralizado, as transformações verificadas na malha viária ocorrem em períodos históricos de longa duração, abarcando o horizonte temporal de muitas gerações de construtores e usuários, bem como a vida útil das várias gerações de edifícios por eles construídos e habitados.

Mesmo os cataclismos naturais ou as guerras não têm sido, por si só, capazes de apagar completamente os vestígios da forma urbana contidos no plano da cidade. Inscritos no solo através, principalmente, dos calçamentos e pavimentações das vias e dos alicerces ou das fundações dos prédios, os vestígios do traçado viário sobrevivem, via de regra, ao desaparecimento da massa edificada, fornecendo, através da sua permanência, as coordenadas para a reconstrução dos edifícios. Os exemplos de Lisboa, parcialmente destruída pelo terremoto de 1755, e da reconstrução de grandes áreas de Berlim destruídas por bombardeios durante a Segunda Grande Guerra, para ficar apenas com dois exemplos (não obstante tratar-se um da cidade tradicional e outro da cidade moderna), ajudam a compreender a afirmação acima. A reconstrução de Lisboa, implementada pelo iluminismo pombalino, tratou de afirmar, através da “evolução do barroco em neoclássico” (FRANÇA, 1981, p. 65), o “estilo da Reconstrução”, associado ao discurso estético oficial do regime. No caso de Berlim, a reconstrução da cidade ensejou uma aposta na transformação das estruturas urbanas segundo o ideário do urbanismo modernista em voga na época. Em ambos os casos, a renovação do desenho das vias decorreu mais da imposição de novos modelos patrocinados por uma vontade política (de um poder centralizado) que dos efeitos da destruição propriamente dita.

Figura 01: Plano para a reconstrução de Lisboa de autoria dos arquitectos Eugénio dos Santos Carvalho e Carlos Mardel, 1758. 

Fonte: http://www.museudacidade.pt/Coleccoes/Cartografia/paginas/Planta-topografica-Lisboa-Eugenio-dos-Santos-Carvalho-Carlos-Mardel.aspx 

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Figura 02: Plano para a Reconstrução do Hansaviertel em Berlim, segundo o ideário do urbanismo modernista. Interbau (Internationale Bauausstellung), 1957.

Fonte: http://www.interbau57-07.de/InterbauKarte.html

A técnica de comparação dos vários planos de uma cidade, ou mesmo de cidades diferentes aproxima-se, nesse sentido, da pesquisa arqueológica. Cada mapa antigo de uma cidade representa para o pesquisador uma trincheira arqueológica “escavada” no tempo histórico. Permitindo a identificação e análise dos vestígios remanescentes do passado, incorporados às transformações verificadas num determinado período, os mapas constituem, eles próprios, as “camadas estratigráficas” dos diversos tempos presentes no processo de maturação/consolidação do tecido urbano.

Os documentos produzidos pela cartografia urbana consistem na representação gráfica dos elementos materiais constitutivos do território urbano sobre um plano, por meio da escolha de um sistema de projeção e reduzidos a uma escala dada. A redução escalar do objeto a ser representado implica necessariamente na supressão, em maior ou menor número, dos detalhes percebidos, bem como na esquematização das suas formas, sem prejuízo da exatidão geral do documento. Trata-se de uma questão essencial para a cartografia. Vejamos, sobre a questão das escalas na cartografia, a sugestiva imagem criada por Jorge Luís Borges, na passagem do conto “Do rigor na ciência”, transcrita abaixo:

“…Naquele Império, a Arte da Cartografia atingiu uma tal Perfeição que o Mapa duma só Província ocupava toda uma Cidade, e o Mapa do Império, toda uma Província. Com o tempo, esses Mapas Desmedidos não satisfizeram e os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império que tinha o Tamanho do Império e coincidia ponto por ponto com ele (…)” (1998, p. 95).

Cada escala comporta uma determinada capacidade comunicativa. Variando-se as escalas do documento, variam também os níveis de informação passíveis de registro em planta sobre o território. Para tanto, foram desenvolvidos sistemas de convenções gráficas visando permitir o entendimento correto do que se pretendia ressaltar, de acordo com cada escala utilizada. Do conhecimento destes procedimentos dependem, em última análise, a legibilidade e o grau de confiabilidade das informações contidas na planta a ser produzida.

A utilização de um sistema de projeção revela outro grau de abstração, intrínseco às técnicas de representação geométrica do território. Nas plantas cadastrais urbanas, por compreenderem superfícies territoriais relativamente pequenas, nas quais as deformações das coordenadas esféricas do globo são consideradas desprezíveis, utiliza-se mais freqüentemente a projeção ortogonal ou ortográfica. Neste tipo de projeção, o ponto de visada está situado no infinito e os raios projetantes são paralelos entre si e ortogonais ao plano de projeção. Significa dizer que o ponto de visada sobre a cidade a ser representada simplesmente não existe como possibilidade prático-concreta para um observador “de carne e osso”. Assim, em pleno Renascimento (séc. XV-XVI) e em sintonia com os avanços da ciência verificados na mesma época em outros campos do conhecimento, a cartografia antecipava um olhar à distância sobre a vida, descolado da superfície terrestre.

O desenvolvimento e o aperfeiçoamento das técnicas de cartografia urbana deveu-se, sobretudo, à sua utilização como instrumentos de poder durante o período dos grandes descobrimentos marítimos, a partir do século XV, e a subseqüente consolidação dos impérios coloniais ultramarinos. A associação do desenho e da matemática produziu uma notável especialização das técnicas de representação cartográfica que, a partir de então, tornar-se-ia indispensável para os objetivos de disputa e conquista do novo mundo. O planisfério, permitindo pela primeira vez uma visada sobre a totalidade da superfície terrestre, inaugura então uma nova concepção do espaço. A cartografia se encarrega de fazer o mundo caber nos mapas; o longe é trazido para perto. As decisões tomadas à distância tornam-se mais eficazes do que nunca. Assim, debruçado sobre os mapas, o poder se fazia, a partir de então, mundialmente presente.

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Figura 03: MAPAMUNDI UNIVERSALIS COSMOGRAPHIA SECUNDUM PTOLOMAEI TRADITIONEM ET AMERCI VESPUCCI ALIORNUNQUE ILUSTRATIONES 1507

Fonte: Waldburg, Wolfegg (Apud. Secretaria Municipal de Urbanismo, 2000).

A elaboração dos mapas, veículos de informação condensada sobre o território, foi confiada aos cosmógrafos (Bueno, 1998, p. 94) e engenheiros militares. A estes últimos coube, sobretudo, a tarefa de planejar e conduzir a construção de cidades e fortalezas durante o processo de ocupação dos territórios coloniais. As peças gráficas produzidas por esse quadro de profissionais tecnicamente habilitados continham, portanto, informações estratégicas e, como tais, eram consideradas sigilosas. Essa característica conferia a esses documentos um elevado grau de confiabilidade com relação à representação dos territórios cartografados. Dessa precisão ainda se vale hoje, evidentemente com outros objetivos, a pesquisa histórica desenvolvida a partir dos documentos cartográficos.

Destacamos, a título de exemplo, o caso da cartografia histórica da cidade de Belém (PA), cuja confiabilidade vem permitindo grandes avanços na produção da historiografia urbana da cidade (DUARTE, 2000). Vemos na figura 04, um trecho da “Planta da Cidade do Gram Para”, levantada pelo engenheiro alemão Andre Schwebel, em 1753, sobreposto à planta cadastral atual de Belém, restituída a partir da técnica de aerofotogrametria. A coincidência dos registros cartográficos sobrepostos atesta a precisão técnica da planta elaborada no século XVIII.  Por conseguinte, pode-se atribuir rigor científico às análises e conclusões decorrentes da pesquisa histórica baseada em tais documentos de época.

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Figura 04: Sobreposição do traçado da “Planta da Cidade de Belem do Gram Para”, de 1753 (Fundação Biblioteca Nacional), sobre planta cadastral atual de Belém.

Fonte: arquivo do autor (desenho de Fernando Marques)

Tão abstratos quanto a própria paisagem que representam, os mapas configuram, eles próprios, um certo conhecimento produzido sobre a realidade. Não seria a análise, ela mesma, uma forma de mapear a realidade? Assim, também os mapas sintetizam um momento determinado do processo de análise empreendido pelo pensamento. Sendo os mapas, no momento de sua elaboração, o ponto de chegada de um processo de acurada análise e observação do território, tornam-se, a partir de então, ponto de partida para novas incursões do pensamento, permitindo avançar o conhecimento produzido. No entanto, a relação entre representação e coisa representada não se apresenta de forma transparente, residindo aí, certamente, o maior desafio a ser enfrentado pela pesquisa. Não existem fórmulas. Cada mapa encerra, por assim dizer, um enigma próprio, cabendo à pesquisa histórica recorrer a outras fontes disponíveis para esclarecer e contextualizar o período em estudo, complementando assim os dados necessários para a análise. Dessa forma, num determinado momento da análise, cada mapa deverá ser tratado como um caso particular.

Os mapas registram, simultaneamente, mais e menos do que um observador pode perceber andando pelas ruas de uma cidade. A representação bidimensional suprime a volumetria das edificações; os edifícios são transformados em polígonos geometricamente convencionados, representando a projeção de sua área construída sobre o plano horizontal. Não se pode através de um mapa pretender conhecer a fachada de um determinado prédio. Mesmo os referenciais urbanos e paisagísticos, que nos facultam a orientação necessária aos nossos deslocamentos diários na cidade, podem não estar ali representados. Ou, caso estejam, podem não ser imediatamente reconhecíveis. Em geral, ao ser confrontado com o mapa de sua própria cidade, o morador não a reconhece de imediato.

As limitações inerentes à técnica de representação cartográfica suprimem dos mapas também as pessoas e o movimento; os mapas não registram os fluxos, mas sim os fixos, representados pelos objetos imóveis que compõem a paisagem construída. Os fixos, considerados em si mesmos, são apenas formas vazias, cabendo ao pesquisador a tarefa de restituir, através da análise dos fluxos, os seus conteúdos concretos. Sem os fluxos, não se pode pretender compreender corretamente os fixos.

Por outro lado, a visada permitida pela observação de um mapa urbano permite abarcar de uma só vez toda a cidade. Surge assim, diante do observador, um desenho de conjunto só acessível de um ponto de vista situado fora da cidade. Deste modo, a cartografia exerce um olhar ubíquo sobre a forma da cidade. Trata-se, no entanto, de um olhar congelado no tempo, em razão da data do registro. Todo levantamento cartográfico é o registro de um tempo da forma da cidade. No exato instante em que são concluídos, os mapas já começam a ficar desatualizados. Não obstante esse fato (de serem datados), de resto compartilhado por todo e qualquer produto do fazer humano, os mapas antigos nos permitem vivenciar a sensação de voltar no tempo e surpreender, com os olhos de hoje, aquelas cidades no momento em que foram registradas. E também, como não raro acontece, estabelecer elos de ligação entre o passado e o futuro, tendo o presente como o suporte e o veículo daquela transição.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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BORGES, Jorge Luís. “Do rigor na ciência”, in: História universal da infâmia. São Paulo: Globo, 1998.

BUENO, Beatriz P. Siqueira. A iconografia dos engenheiros militares no século XVIII in: Coletânea de Estudos Universo Urbanístico Português 1415-1822. Lisboa: CNCDP, 1998.

CHIAVARI, Maria Pace. As transformações urbanas do século XIX in: O Rio de Janeiro de Pereira Passos: uma cidade em questão II / Giovanna Rosso Del Brenna, org., Rio de Janeiro: Index, 1985.

DUARTE, Cristovão Fernandes. “São Luís e Belém: marcos inaugurais da conquista da Amazônia no período filipino”. Revista Oceanos, n. 41, Lisboa, jan/mar 2000.

FRANÇA, José-Augusto. A reconstrução de Lisboa e a arquitectura pombalina. Biblioteca Breve, vol. 12. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1981.

GASPAR, Jorge. A morfologia urbana de padrão geométrico na Idade Média, in: Revista Portuguesa de Geografia, Centro de Estudos Geográficos de Lisboa, Separata de Finisterra, vol. IV-8, 1969.

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ROSSA, Walter. A urbe e o traço: uma década de estudos sobre o urbanismo português. Coimbra: Livraria Almedina, 2002.

ROSSI, Aldo, A arquitectura da cidade. Lisboa: Edições Cosmos, 1977.

Secretaria Municial de Urbanismo. Centro de Arquitetura e Urbanismo. Do cosmógrafo ao satélite: mapas do Rio de Janeiro. Jorge Czajkowski (org.). Rio de Janeiro: SEURB/CAU, 2000.