Evitar a confusão numa continuidade ilusória,
bem como as separações ou descontinuidades
absolutas, esta é a regra metodológica.
Henri Lefebvre
(1991 [1968], p. 52)
Introdução
Segundo Habermas, os problemas colocados pela cidade contemporânea ao planejamento urbano não se reduzem mais às questões do desenho ou à organização dos espaços. A cidade, a partir do século XIX, torna-se “ponto de interseção de relações funcionais” abstratas, enfeixadas por “conexões sistêmicas não configuráveis”, sem visibilidade, que “não podem mais alcançar uma presença esteticamente apreensível” (1987, pp. 122-3). Enquanto as funções da vida urbana podiam ser “traduzidas em fins, em funções de utilização temporalmente regulada dos espaços configurados” (op. cit., p. 123), a cidade era formalmente constituída e representada para os sentidos. A perda ou diminuição da capacidade de apreender a configuração da cidade e interagir diretamente com o ambiente, através dos sentidos, constitui um fenômeno contemporâneo, cujos impactos sobre os mundos da vida impõem, como pretende Habermas, uma revisão dos velhos conceitos sobre a cidade: “as aglomerações urbanas emanciparam-se do velho conceito de cidade, ao qual no entanto se apega o nosso coração” (op. cit., p. 122).
As idéias acima apresentadas encontram-se na conferência “Arquitetura moderna e pós-moderna”, proferida por Habermas por ocasião da abertura da exposição “A Outra Tradição – Arquitetura em Munique de 1800 à Atualidade”, em novembro de 1981. A platéia, formada majoritariamente por estudantes e professores de arquitetura e urbanismo, assistiu a exposição dos argumentos do ilustre palestrante a cerca da radicalidade e da irreversibilidade das transformações impostas ao meio urbano a partir do advento do processo de industrialização, tendo como pano de fundo uma de suas teses acerca da modernidade, qual seja, a de um projeto de modernização incompleto e, portanto, ainda em curso na contemporaneidade (Ibid., 1992).
Para muitos autores, os impactos produzidos a partir do processo de modernização introduziram um divisor de águas na história do urbanismo, contrapondo, por assim dizer, a cidade industrial ou moderna à cidade tradicional ou pré-industrial. Tal distinção fundamenta-se, basicamente, na introdução da racionalidade industrial na produção do espaço urbano no século XIX, quando se consolidam as bases materiais para o surgimento de uma nova cultura urbana, associada a uma nova escala de cidade.
O distanciamento histórico nos permite hoje tentar compreender as transformações urbanas decorrentes da revolução industrial como um processo histórico formado por três momentos distintos e sucessivos, através dos quais se processou três grandes rupturas sobre a configuração espacial das cidades. Como ondas se propagando em sequência e produzindo a cada arrebentação uma nova ruptura, ou um aprofundamento das transformações ocorridas anteriormente. O primeiro corresponde à remodelação de Paris, empreendida pelo prefeito George-Eugène Haussmann em meados do século XIX, logo tornada um modelo paradigmático de como deveriam ser enfrentado os desafios colocados para a cidade moderna. O segundo estaria compreendido pelo advento do Movimento Moderno no século XX, concomitante ao aparecimento do automóvel particular no meio urbano. O terceiro momento inicia-se já a partir das últimas décadas do século XX, estendendo-se até os dias de hoje, com a consolidação do modelo das nebulosas ou urbanização dispersa.
Na sequência serão apresentadas as ondas acima referidas, tendo como objetivo analisar os impactos sobre a forma urbana a cada nova ruptura produzida. A estratégia teórico-metodológica adotada terá como foco as alterações verificadas sobre a sintaxe espacial urbana das cidades, entendida no âmbito da abordagem aqui pretendida como sendo, basicamente, as relações de interdependência estabelecidas entre os elementos estruturantes da forma urbana, quais sejam o lote, a rua e a quadra (SANTOS, 1988, p. 67) e as práticas socioespaciais cotidianas.
Por fim, a partir dos resultados obtidos nesta etapa da pesquisa e, ainda, tendo por inspiração o modelo da modernidade como um “projeto inacabado” sugerido por Habermas, propor-se-á, a título de reflexões para o debate, que as três ondas estudadas devem ser compreendidas conjuntamente, à luz da dialética estabelecida entre os processos de continuidade e ruptura. Elas, as ondas, constituiriam momentos-chave (do ponto de vista das novas configurações espaciais assumidas pela cidade) de um mesmo processo contínuo/descontínuo de destruição/superação da sintaxe espacial urbana da cidade tradicional. Nesse sentido, o fenômeno da urbanização dispersa poderia ser entendido menos como algo novo que se anuncia e mais como continuidade e, ao mesmo tempo, radicalização dos processos de modernização iniciados a partir da revolução industrial e ainda vigente na contemporaneidade.
A cidade preexistente às ondas de modernização
Desde os primórdios da civilização urbana até o surgimento da locomotiva a vapor no século XIX, os deslocamentos se faziam na velocidade do caminhar ou à força da tração animal, empregada no transporte de pessoas e cargas. A manutenção deste estágio de desenvolvimento tecnológico com relação à velocidade dos deslocamentos, durante milhares de anos, produziu uma relativa invariância na configuração geométrica dos tecidos urbanos utilizados por diversas culturas ao longo da história (DUARTE, 2006, p. 46). As funções urbanas destinadas ao atendimento das necessidades básicas da vida cotidiana forneciam, então, as escalas adequadas para o agenciamento e dimensionamento do desenho de ruas, lotes, quadras e praças. Na cidade tradicional ou pré-industrial, a interdependência entre as partes constitutivas da forma urbana, representada pela articulação entre a edificação e o lote, do lote edificado com a rua, da rua com a quadra, da praça com as ruas e quadras à sua volta, das quadras entre si e com o todo, assegurava elevados graus de legibilidade e continuidade espaciais dos tecidos urbanos. Aí, as práticas socioespaciais cotidianas ainda podiam ser temporalmente reguladas nos espaços de convivência e sociabilidade espacialmente configurados, tal como nos sugere Habermas na citação apresentada no iníciodeste artigo. Desta articulação comunicante das partes entre si e com o todo resulta uma sintaxe espacial que, associada às praticas socioespaciais dos moradores e usuários da cidade, caracteriza o tecido urbano que comumente associamos à cidade tradicional, não obstante as variações de ordem econômica, social e cultural verificadas entre as cidades ao longo de tão largo período histórico.
O dimensionamento das vias, sejam em cidades planejados ou de lenta maturação no tempo, sem traçados pré-concebidos, apresentam até inícios do século XIX, medidas relativamente semelhantes. De acordo com Harouel, nas ruas estreitas e tortuosas das cidades antigas como Atenas as ruas mais importantes não ultrapassam quatro ou cinco metros e são ligadas por vielas de um e meio a três metros de largura. Mesmo nas cidades da Grécia Antiga, projetadas com plano ortogonal, a largura das ruas variam de quatro a cinco metros, com exceção de algumas vias principais, com sete ou oito metros. Na Paris romana, por exemplo, o cardo principal (rua Saint-Jacques) tem nove metros, enquanto as ruas secundarias teriam em torno de seis metros de largura. Durante a Idade Média, muitas das ruas de Paris não ultrapassavam a largura de dois metros, enquanto que as vias das cidades projetadas, como as bastides medievais, poderiam atingir oito ou dez metros (1990 [1985], pp. 17, 25 e 41).
Vale insistir que a manutenção dos padrões tecnológicos dos deslocamentos na cidade tradicional associada ao agenciamento de escalas espaciotemporais de convivência urbana, destinadas a satisfazer a prática continuada dos encontros e das trocas entre os moradores, forneceriam a base explicativa não apenas para a relativa invariância da escala urbana verificada entre diferentes cidades, como também, e por decorrência, com relação ao dimensionamento da largura das vias, do lote edificado, das quadras e praças.
Primeira onda: das vielas ao bulevar
Faz cem anos que a primeira locomotiva arrastou um trem
de vagões sobre uma via férrea que unia uma cidade a outra,
introduzindo assim nas relações e nos transportes uma modificação
da duração, de fato, uma velocidade que aumentaria sem cessar, estendendo seus efeitos à totalidade das atividades humanas.
Le Corbusier
(1967 [1946], p.30)
A complexidade dos problemas colocados para a sociedade do século XIX, a partir do advento da revolução industrial, não encontra precedentes históricos equivalentes. As forças emancipadoras e antitradicionalistas, liberadas pelo Iluminismo, eclodem como um turbilhão, alterando profundamente os modos de vida até então conhecidos:
“A dessacralização das visões de mundo tradicional e a racionalização do processo produtivo, incorporando avanços da ciência e da técnica, produziram um sentimento de poder ilimitado em relação ao meio físico e à capacidade de mobilização das energias sociais” (DUARTE, 2006, p. 60).
A necessidade de expansão dos mercados em escala mundial imprimiu um caráter internacional à produção e ao consumo, pavimentando o caminho para a consolidação do capitalismo industrial. Se prevaleceram as razões econômicas, na verdade, foi na esfera da cultura urbana que se processou a grande ruptura nos modos de encarar a vida nas cidades. A fulgurante aparição da locomotiva a vapor nas cidades do século XIX e a revolução da rede de transportes que se seguiu, não deixavam dúvidas sobre a amplitude das transformações por elas anunciadas. Tais transformações iriam impactar de forma radical a configuração espacial dos tecidos urbanos tradicionais, introduzindo uma nova escala de cidade.
O rápido crescimento populacional e a expansão das grandes capitais do século XIX, fez germinar uma nova consciência urbana ligada às questões ambientais. As elevadas taxas de densidade urbana suscitaram o argumento higienista e a introdução de medidas saneadoras como a implementação das redes de abastecimento e esgotamento, a ampliação de áreas verdes livres e ruas cada vez mais largas.
As novidades se fizeram sentir primeiro em Paris e estiveram a cargo do prefeito Haussmann que, entre os anos de 1853 e 1870, implementou um ambicioso programa de remodelação urbana. Tratava-se de construir a imagem de uma capital moderna, superando os entraves da malha viária acanhada e estreita, bem como a fisionomia envelhecida e insalubre da Paris medieval.
O plano foi estruturado a partir da aberturas de grandes e novas avenidas que ficariam conhecidas como os bulevares parisienses. Estendendo-se por quilômetros em linha reta e medindo de 30 a 70 metros de largura, os bulevares constituíram um novo símbolo da vida urbana cosmopolita. De acordo com Berman, reside nesta criação “a mais espetacular inovação urbana do século XIX, decisivo ponto de partida para a modernização da cidade tradicional” (1986 [1982], p. 145). Pelas novas e largas avenidas deveria circular o ar puro e a luz solar que assegurariam a salubridade da vida urbana, mas também as pessoas e as carruagens, prenunciando o fenômeno das multidões, registrado pelos poetas, cronistas e pintores da época.
Pode-se descrever a remodelação de Paris como uma espécie de desventramento do coração da velha cidade medieval, cortado por vias arteriais que permitiam deslocamentos de um extremo ao outro em linha reta, com surpreendente rapidez. A renovação urbana implicou na derrubada de centenas de edifícios com o deslocamento milhares de pessoas, na destruição de bairros inteiros com séculos de existência.
As novas avenidas e bulevares são introduzidas como uma sistema de “irrigação arterial”, sobreposto à malha da cidade preexistente. A partir de então duas malhas urbanas de escalas distintas passam a conviver e se comunicar, funcionando como um só sistema de circulação de pessoas, bens e veículos.
A tipologia dos bulevares parisienses, com suas calçadas largas e arborizadas, só se completava com a edificação das suas margens que funcionavam como fachadas urbanas voltadas para o centro da nova via. Aí nos bulevares, então apinhados de gente, se desenrolaria o novo espetáculo da vida pública. A reconstrução implicou, portanto, numa espécie de reconciliação arquitetônica ou unificação urbanística entre os novos setores e os setores remanescentes da velha cidade. Surge um novo tipo de espaço que não se apresenta totalmente dissociado do espaço antigo.
Os novos edifícios são construídos alinhados com a testada do lote e geminados com as edificações lindeiras, formando, tal como na cidade tradicional, quadras fechadas e compactas. As fachadas ecléticas das novas avenidas e bulevares, formadas pelo enfileiramento contínuo das edificações, replicam numa escala ampliada a mesma sintaxe espacial que articula as partes entre si e com o todo, assegurando a continuidade do tecido urbano.
Vemos assim que, nos seus primórdios, a cidade moderna estabelece, em meio às grandes transformações produzidas, uma solução de compromisso com a forma da cidade pré-industrial. A cidade preexistente, sobre a qual se opera a remodelação, resiste ao se transformar.
Segunda onda: do bulevar à rodovia
O signo distintivo do urbanismo oitocentista foi o bulevar,
uma maneira de reunir explosivas forças materiais e humanas;
o traço marcante do urbanismo do século XX tem sido a rodovia,
uma forma de manter separadas essas mesmas forças.
Marshall Berman
(1986 [1982], p. 159)
A “segunda onda” terá como marco inaugural o aparecimento do automóvel particular na cidade. Embora o motor a explosão, que permitiu o desenvolvimento do automóvel, seja uma invenção do século anterior, a presença do automóvel no meio urbano somente se faria notar a partir das primeiras décadas do século XX. Aliando velocidade e agilidade, a chegada do novo “intruso” foi saudada pelos moradores das cidades como uma das mais surpreendentes conquistas do progresso tecnológico dos tempos modernos. Ao contrário do trem e do o metrô que necessitavam, para seu funcionamento, da construção de vias tecnicamente especializadas e, ao mesmo tempo, exclusivas e segregadas, o novo veículo podia circular livremente pelas ruas existentes na cidade, sem maiores investimentos em infraestruturas apropriadas.
Comandado pelo motorista, que decidia livremente por que rua seguir, essa nova máquina de circular não parecia conhecer obstáculos ao seu deslocamento pela cidade. Livre dos percursos e horários preestabelecidos do transporte público, os automóveis tomaram de assalto as ruas da cidade. A sensação de liberdade e poder associados ao ato de dirigir fizeram do automóvel a ferramenta de circular, por excelência do homem moderno.
Os avanços tecnológicos que se sucederam introduziram aperfeiçoamentos elevaram a potência do motor e o conforto dos passageiros, enquanto a produção em série reduzia progressivamente o custo dos automóveis. Assim, cada vez mais numerosos e velozes, os automóveis expulsaram das ruas as pessoas, agora rebaixadas à condição de pedestres.
O ineditismo do fenômeno do tráfego motorizado, bem como seus impactos sobre as cidades, é rapidamente percebido por Le Corbusier que anuncia a morte da cidade tradicional como conseqüência inexorável da Era da Máquina, abrindo caminho para o nascimento de uma sociedade verdadeiramente moderna. Para além do conceito da “casa como a máquina de morar”, Corbusier propõe a “rua como uma máquina para produzir tráfego” (Apud. Berman, 1986 [1982], p. 161).
Com a criação dos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna – CIAM (a partir de 1928) e, em especial, com a publicação, em 1943, da Carta de Atenas (resultante do CIAM de1933), da qual Corbusier foi inspirador e signatário, o pensamento urbano modernista difunde-se pelo mundo de forma hegemônica, postulando, entre outras coisas: o desprezo pela cidade antiga; a abolição da rua, considerada anacrônica e perigosa; a exigência para que os imóveis fossem implantados longe dos fluxos de circulação; e a proposição do zoning funcional, adotado em larga escala pela grande maioria das cidades do mundo.
Ao final da Segunda Guerra Mundial é publicada em Paris o livro-manifesto “Manière de penser l’urbanisme”, em cuja abertura Corbusier escreve:
“Escombros por todas as partes sobre uma civilização superada. Uma realidade prodigiosa: o poder das máquinas que proporcionam abundância e os próprios meios de sua distribuição. Retorno ao passado ou aceitação do desenvolvimento natural das coisas: é necessário optar por um ou outro. Tudo está disponível, todos os poderes: as máquinas, transporte, organização industrial, administração, ciência aplicada. Tudo preexiste. A tarefa consiste em arrancar a sociedade moderna da incoerência, de conduzi-la à harmonia. O mundo tem necessidade de harmonia e de ser guiado por harmonizadores.” (1967 [1946], p. 10)
Corbusier se apresenta como um guia clarividente que reconciliaria de forma harmônica a cidade industrial e a sociedade moderna. Contudo, suas propostas de redesenhar a cidade em função dos fluxos de circulação motorizada resultaram no superdimensionamento das vias e no esvaziamento do espaço publico, bem como na verticalização das novas construções, acarretando mudanças na escala de convivência urbana. Os sinais mais visíveis desta transformação consistiram na redução das caçadas para ampliar a área destinada ao tráfego, sinalização, semaforização e recapeamento asfáltico das vias, construção de estacionamentos, vias expressas e viadutos mediante a desapropriação e destruição do patrimônio edificado (DUARTE, 2006, p. 70). A tecnificação generalizada do ambiente construído acabou por restringir significativamente as possibilidades de uso das ruas, com a produção de um espaço público hostil e sem vitalidade.
O resultado da aplicação indiscriminada deste modelo de caráter rodoviarista preconizado pelo urbanismo modernista, principalmente após a Segunda Grande Guerra, encontra sua mais perfeita tradução na denominação “cidade do automóvel” (derivada da expressão inglesa car oriented citties). A aceleração dos fluxos, diminuindo a duração dos deslocamentos fez a cidade crescer exponencialmente, expandindo-se sobre o território circundante.
Com relação à forma da cidade preexistente, analisada à escala das práticas socioespaciais cotidianas, as transformações operadas produziram uma completa desarticulação entre o lote, a rua e a quadra, alterando radicalmente as lógicas estruturantes do tecido urbano. O lote edificado assume novas configurações, com a edificação se descolando não apenas da testada, mas também das divisas laterais, se afastando das edificações vizinhas. Ao se isolar dentro do lote e se desconectar do entorno imediato, um abismo se instala entre o edifício e a cidade. De modo análogo, a massiva presença dos fluxos motorizados no leito das vias, dificultando a travessia dos pedestres, criou a sensação de um progressivo distanciamento entre um lado e outro da rua, bloqueando a livre fruição do espaço, bem como as articulações funcionais e comunicativas até então disponíveis nos tecidos urbanos. A verticalização dos edifícios, associada à nova escala assumida pelas malhas urbanas, rompe o liame tradicionalmente estabelecido entre a rua e a moradia, produzindo uma espécie de exílio voluntario dentro da própria cidade. Morar no décimo ou no vigésimo andar de um edifício significa assumir uma condição de morar, por assim dizer, “fora da cidade”, de abandono da rua e, consequentemente, uma capitulação da vida urbana (SENNETT, 1988 [1976], p. 27).
A sintaxe espacial urbana formada por partes articuladas entre si e com o todo, dá lugar ao espaço abstrato, coercitivo e violento, resultante da submissão da cidade à racionalidade industrial. Trata-se, de acordo com Lefebvre, da negação da cidade entendida como domínio do valor de uso e de livre fruição, com sua transformação em mercadoria para o consumo, instrumento do valor de troca por excelência. A lógica da mercadoria que é a lógica da equivalência abstrata busca eliminar as diferenças, produzindo um achatamento da diversidade, da simultaneidade e das contradições presentes no espaço urbano (2000 [1974], pp. 62 e 333).
Para Berman, a vigorosa mistura de pessoas e tráfego, negócios e residências, ricos e pobres, ainda presente na cidade oitocentista, foi eliminada, cedendo lugar a “um mundo espacialmente e socialmente segmentado – pessoas aqui, tráfego ali; trabalho aqui, moradias acolá; ricos aqui, pobres lá adiante; no meio, barreiras de grama e concreto (…)” (1988 [1982], p. 162).
Se a cidade século XIX pode ainda estabelecer um elo de continuidade com as lições do passado então disponíveis na forma da cidade tradicional, o século XX assume como tarefa a sua eliminação, como requisito fundamental da modernidade.
Terceira onda: da rodovia à nebulosa
Nas regiões intensamente urbanizadas, já não subsistem
as tradicionais separações entre zona urbana, zona suburbana
e zona rural (…). Há simultaneamente um processo de fusão,
de integração entre as áreas urbanizadas dos municípios da região
e um processo de dispersão, de esgarçamento do tecido urbano.
Nestor Goulart Reis Filho
(2006, pp. 81 e 89)
Os impactos nas cidades produzidos pelo crescimento das forças produtivas decorrentes da industrialização são visionariamente descritos por Lefebvre como processo de “implosão-explosão” seguido da fragmentação, homogeneização e hierarquização do espaço (1972 [1970], pp. 20). A inédita concentração de capitais, pessoas e mercadorias iniciada no século XIX e levada ao paroxismo no século XX faz explodir os núcleos urbanos, estendendo-se por todas as partes do território.
A oposição campo-cidade dissolve-se, assumindo novas formas menos definidas. As aglomerações urbanas atingem dimensões inéditas, possibilitadas (e induzidas) pelo transporte motorizado, dando origem ao fenômeno contemporâneo das nebulosas urbanas ou urbanização dispersa.
Para Harouel, “a vulgarização do automóvel transforma o subúrbio num imenso espaço difuso, em perpétuo crescimento, devorando os campos mais distantes” (1990 [1985], p. 107). O autor percebeu no fenômeno da suburbanização, possibilitado a partir da utilização do transporte individual motorizado, uma antecipação das características que seriam assumidas em larga escala pela forma urbana das cidades contemporâneas algumas décadas depois.
Outro indício precoce da dispersão e fragmentação dos tecidos urbanos seria a experiência dos conjuntos habitacionais proletários modernistas, na medida em que passaram a ser implantados cada vez mais afastados das zonas centrais da cidade, como enclaves residenciais isolados e apartados do tecido urbano para moradia das classes populares.
No Brasil, não por acaso, o início do fenômeno da urbanização dispersa coincide, na década de 70, com o processo de reconhecimento e criação das regiões metropolitanas. O poder de atração das principais capitais brasileiras, aliado à ausência de uma reforma agrária que assegurasse condições de condições de vida dignas no campo, produziu o inchaço populacional e o conseqüente transbordamento de parte desta população para áreas periféricas cada vez mais distantes. Através dos eixos rodoviários e ferroviários foram se estabelecendo processos de conurbação, bem como as redes de comunicação interligando o conjunto de municípios que cresciam sob o raio de influência política, econômica e cultural da metrópole.
Se a metropolização representa um passo para além dos processos de surbubanização que a antecederam, a urbanização dispersa opera, sobretudo a partir da primeira década do século XXI, uma descentralização ainda mais ampla, mais periférica, tentacular e policêntrica, tendendo em alguns casos à formação de grandes sistemas de áreas metropolitanas.
Trata-se, evidemente, de um quadro muito complexo, ao qual Reis (2006) dedica uma obra de fôlego, apresentando os resultados de pesquisas por ele conduzidas sobre a urbanização dispersa no estado de São Paulo. Fonte de referência sobre o assunto, o livro apresenta estudos detalhados sobre as mudanças nas formas dos tecidos urbanos, nos modos de vida da população, na organização do mercado imobiliário e na adoção de novas formas de gestão dos espaços urbanos, com novas formas condominiais diversificadas, como nos enclaves antiurbanos corporativos e residenciais.
Frente aos objetivos do presente artigo, interessa destacar a linha de continuidade com as transformações em curso nas cidades a partir do século XIX e o aprofundamento das lógicas de produção de um espaço cada vez mais abstrato e violento, desde então desencadeadas.
O ponto de inflexão entre a cidade moderna ou industrial e a cidade contemporânea (também chamada de cidade pós-moderna ou pós-industrial) foi a globalização financeira do capitalismo, a partir da década de 70, quando a expansão das redes de comunicação possibilitou a intensificação do fluxo de pessoas e de valores financeiros e simbólicos, a formação de megacorporações transnacionais, o crescimento de fluxos migratórios, a segregação socioespacial, a especulação imobiliária e financeira e a concentração de recursos de ordem local, nacional e global em grandes metrópoles.
O fosso econômico e social, estabelecido entre as classes dominantes e dominadas, se expressa na forma da nova cidade com a produção de guetos e barricadas. Os shopping centers e os condomínios fechados, construídos como espaços isolados, segregados, voltados para dentro de si mesmos e ostensivamente defendidos das “ameaças externas”, tornam-se, então, os elementos icônicos da paisagem urbana contemporânea, multiplicando-se por todas as cidades do mundo (DUARTE, 2006, p. 132). Ao movimento centrífugo de evasão em direção a localidades cada vez mais afastadas, exercido pelos shoppings e condomínios horizontais, se associaram os loteamentos fechados e as favelas, incluindo os guetos de pobres no processo de dispersão urbana.
Motivada pela procura de terras baratas, expansão incessante dos tecidos urbanos promove no dizer de Lima: “um padrão de sociabilidade anti-urbano e segregador, e intensificando o consumo de recursos naturais num volume sem precedentes” (2005).
A especulação financeira e imobiliária atua de modo a impor novos padrões de urbanização e de privatização do espaço público, apresentando-se, como a única alternativa para se regular os complexos problemas urbanos das áreas metropolitanas contemporâneas. A escala impressionante dos megaempreendimentos (abarcando, por vezes, mais de um município), fortemente associada às estratégias de marketing empresarial que prometem a promoção do desenvolvimento urbano e a criação de empregos a “custo zero” para os cofres públicos, tem como resultados a flexibilização das normas urbanísticas e das exigências legais para a legalização dos projetos junto às administrações municipais.
Diante a inércia do Poder Público, o mercado passa a comandar as ações urbanizadoras sobre o território: “sob influência do modelo empresarial na gestão da cidade, os profissionais do projeto e do planejamento são, não raro, compelidos à conivência ou à desmobilização, quando não são totalmente excluídos de discussões e decisões” (LIMA, 2005).
Como características gerais das novas paisagens contemporâneas, constituídas pela dispersão urbana, podemos assinalar a expansão, em escala metropolitana, de um tecido urbano descontínuo e fragmentado, marcado por densidades de ocupação relativamente baixas (exceto no caso das favelas), com núcleos ou pólos que visam a criação de novas centralidades (mais ou menos subalternas), como um arquipélago de ilhas, entremeadas de vazios (ou glebas remanescente do mundo rural, conectados por um sistema de vias expressas, mas funcionando como bairros isolados e segregados, completamente interiorizados, muitas vezes sob rígidos esquemas de vigilância.
Mais uma vez, caso a hipótese aqui apresentada esteja correta, estaríamos diante de uma etapa do processo histórico, iniciado com a cidade industrial, de negação da cidade como lugar do encontro entre os diferentes, e de desestabilização das práticas socioespaciais cotidianas de convivência e sociabilidade, cada vez mais pressionadas pela radicalização das formas de privatização e controle do espaço público.
Reflexões para o debate
Nem retorno (para a cidade tradicional),
nem fuga para a frente, para aglomeração urbana
colossal e informe – esta é a prescrição.
Henri Lefebvre
(1991 [1968], p. 20)
Recapitulando: se, na primeira onda que se abateu sobre a cidade, as malhas urbanas se agigantam sem, contudo, romper a continuidade espacial dos tecidos urbanos; se na segunda, a violência com que se implanta o ideário modernista torna irreconhecíveis as articulações tradicionalmente estabelecidas entre o lote, a rua e a quadra; na terceira, assistimos a um radical aprofundamento dos efeitos da dissolução das partes no todo, com o esgarçamento do tecido urbano que passa a se expandir de forma descontínua e fragmentária por todo o território circundante.
Cada etapa prepara e anuncia o caminho a ser trilhado pela seguinte. Assim, o bulevar que surgiu como forma de acolher em suas amplas e arborizadas calçadas o fenômeno moderno das multidões, representou também um coerente e estratégico alargamento das malhas urbanas por onde escoaria, no século seguinte, o tráfego motorizado.
O século XX, transformando os espaços de convivência em espaços de trânsito, produziu a tecnificação do meio urbano, expulsando das ruas seus antigos donos, desde então denominados de pedestres. As lógicas estruturantes dos tecidos urbanos preexistentes, encarregadas de promover a articulação entre o lote, a rua e a quadra foram sendo, a cada nova intervenção sobre as malhas urbanas, suprimidas. O espaço tornou-se abstrato, incompreensível e ameaçador. As cidades deixaram de fazer sentido para seus habitantes de carne e osso e passaram a ser concebidas, planejadas e construídas para atender as demandas do tráfego motorizado. A paisagem transformada, agora era compostas de vias-expressas, viadutos, túneis e rodovias. Os congestionamentos e os acidentes de trânsito se incorporaram-se irreversivelmente ao cotidiano vivido pelas populações na cidade do automóvel.
Na contemporaneidade, a concentração de capitais, pessoas e mercadorias, cria nas cidades uma força irresistível de compressão sobre o tecido urbano. O resultado pode ser aproximado, metaforicamente (como sugere Lefebvre), a uma implosão seguida de explosão. Com a descompressão, o núcleo urbano estala, estendendo-se por extensões cada vez maiores do território circundante. As rodovias se espicham indefinidamente e se interconectam, criando eixos de circulação através dos quais o novo território, fragmentado e descontinuo, pode se interligar num sistema de áreas metropolitanas, dando origem ao fenômeno contemporâneo dispersão urbana.
Como se pode perceber, o esforço empreendido no presente artigo, não consiste na apresentação de fatos novos surpreendentes ou desconhecidos pelos especialistas da área. A proposta seria, tão somente, apresentar o encadeamento dos mesmos fatos já sabidos, tentando identificar uma possível linha de continuidade entre eles, enfatizando a dialética estabelecida entre ruptura e continuidade no processo histórico que vai da cidade do século XIX, passa pela cidade do automóvel, chegando ate às nebulosas urbanas contemporâneas.
O encadeamento dos fatos aqui apresentados não resolve, por si só, os dilemas colocados para as cidades do século XXI. Nossa aposta, no entanto, é que ao aceitar como plausíveis os argumentos aqui desenvolvidos, possamos questionar o suposto ineditismo da natureza dos processos em curso na cidade contemporânea, evitando, assim, naturalizá-los como inerentes ao “espírito do nosso tempo” (uma expressão, aliás, muito apreciadas pelos modernistas). Paralelamente, ao buscar o fio condutor que ligaria tais processos a etapas antecedentes, poderíamos compreender tais etapas como partes de um único e mesmo processo. Comandado de forma hegemônica pelo poder econômico, tal processo visaria a privatização dos espaço urbanos e sua transformação em mercadoria para compra e venda, como forma de ampliar os mecanismos de concentração da riqueza socialmente produzida, às custas da exclusão de extratos cada vez maiores da população.
Aprendemos, ao longo do século passado, a acreditar nas promessas progressistas do desenvolvimento científico e tecnológico, ao mesmo tempo em que fomos incentivados a aceitar a morte da cidade tradicional como condição necessária para a plena realização daquelas promessas utópicas. O futuro, no entanto, deixou de ser uma promessa para se tornar uma ameaça. Nossas cidades, espacialmente repartidas e socialmente segregadas, não conseguem assegurar condições dignas de vida para suas populações. Contudo, ao tentar evitar defender nostalgicamente a volta aos padrões do passado, acabamos caindo na armadilha de fazer a defesa ideológica das mudanças preconizadas pela lógica do capital.
Não se trata de desconhecer as transformações por que passou a sociedade humana nos últimos duzentos anos. As transformações nos modos de vida (que não foram poucas), produziram muitas novas demandas sobre o meio urbano. Mas a recíproca também é verdadeira: modificações na configuração espacial das cidade, em grande parte impostas pelos interesses econômicos das classes dominantes, implicaram em formas de controle e privatização do espaço público, com a eliminação de um tipo de sociabilidade eminentemente urbana, baseado no encontro e na troca entre os diferentes.
Tais são as questões propostas ao debate neste artigo, que concluímos invocando uma reflexão de Bernardo Secchi: “talvez devêssemos nos habituar a considerar as características da cidade contemporânea não como a representação de um futuro desejável, mas como uma ocasião para construí-lo através de continuas explorações projetuais” (2015 [2000], p. 184).
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NOTA: artigo originalmente publicado conforme referência a seguir:
DUARTE, C. F. . O movimento das cidades no tempo: o bulevar, a rodovia e a nebulosa. Geograficidade, v. 9, p. 65-75, 2019.

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